Associação islâmica é investigada por tráfico de pessoas após oferecer estudos na Turquia a meninos indígenas da Amazônia

Jovens e crianças da região e São Gabriel da Cachoeira recebiam lições de árabe e turco e estudavam o Alcorão antes de serem mandados para o exterior. Polícia Federal investiga pessoas por esquema de doutrinação religiosa e tráfico humano. Federação muçulmana diz desconhecer associação e critica suposta abordagem.

Jovens e crianças indígenas recebiam lições das línguas árabe e turca, do Alcorão e do Islã em uma associação em Manaus, com a promessa de estudos com tudo pago na Turquia, segundo investigação em curso da Polícia Federal.

Há 11 dias, cinco rapazes indígenas que participavam do programa foram deportados da Turquia. Sem visto de permanência, ficaram três semanas detidos em Istambul, até embarcarem de volta com o turco Abdulhakim Tokdemir, apontado como líder da Associação Solidária Humanitária do Amazonas, a Asham, que chegou ao estado em 2019.

Fantástico acompanhou a história de Edilberto Domingas Dias Brito Júnior, de 18 anos, da etnia Tukano, que recebeu as lições mas não chegou a sair do país.

“A gente ajoelhava, a gente reverenciava. Levantava e fazia em sequência, tinha uma sequência. Três vezes a gente fazia. A gente parava, a gente rezava de novo. Aí, a gente continuava. [Reverenciava] a Alá. Que é o deus deles”, lembra Edilberto, afirmando que as aulas de religião, no entanto, não eram obrigatórias.

Da Amazônia para a Turquia

São Gabriel da Cachoeira, no alto Rio Negro, Amazonas, é a cidade com o maior número de indígenas do brasil. São 23 etnias, com cinco famílias linguísticas: Tukano oriental, Aruak, Yanomami, Japurá-uaupés e Tupi.

É onde vivem Edilberto e seu irmão, de 15 anos, que participaram do programa oferecido pela associação muçulmana. Depois da etapa ainda em São Gabriel, parte dos jovens indígenas se mudava para um imóvel em São Paulo, e depois viria a viagem para o exterior. Os dois desistiram antes da ida ao estrangeiro.

Maria Domingas Nazareno, a mãe, foi quem autorizou a saída dos meninos de São Gabriel da Cachoeira.

“Já que a gente somos aqui, mora simples assim, eu achei bom lá. Tudo com tapete. Era quartinho deles com ar-condicionado bem frio. Era beliche, em baixo e em cima. E comida, tudo”, diz ela.

“Se tratam de indígenas em situação de absoluta vulnerabilidade e que se tornam, portanto, presas fáceis para essas organizações criminosas que atuam aqui no estado. A apresentação era feita como uma proposta de estudo na Turquia, a fim de que aqueles indígenas tivessem a possibilidade de se tornarem médicos, advogados, teólogos, engenheiros, quando, na verdade, o processo era de servidão, de imposição religiosa, de doutrinação. Atribuição de um nome diferente, com o impedimento de se mencionar o nome anterior”, afirma o o superintendente da Polícia Federal no Amazonas, Umberto Ramos.

‘Contrária a princípio basilar do Islã’

O vice-presidente da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil (Fambras), Ali Hussein El Zoghbi, diz que não conhece a Associação Solidária Humanitária do Amazonas nem o trabalho que ela desempenha.

“Eu diria que 99% das entidades islâmicas ou têm parceria conosco ou estão associadas à nossa entidade. (…) Se essa abordagem foi feita no sentido de imposição, de coação, de coerção, ela é totalmente contrária a um princípio basilar do Islã. O Islã ele estabelece: “e vos fizemos povos e tribos diferentes. A adoção do islã como religião tem que ser de maneira justa, livre, desimpedida. E me causou mais preocupação ainda tratar-se de crianças”, diz o vice-presidente da Fambras.

A Polícia Federal investiga agora quais eram as atividades dos jovens na Turquia. Na volta ao Brasil, Abdulhakim Tokdemir teve seu passaporte, computador e celular apreendidos. O sigilo fiscal e bancário dele também foi quebrado. Outras sete pessoas, entre turcos e brasileiros, também são suspeitas de envolvimento em um esquema de doutrinação religiosa e tráfico humano.

“Às vezes as pessoas acham assim, pensam muito naquele tráfico puro, onde a pessoa está acorrentada a uma cama, onde a pessoa está sofrendo agressões. Não necessariamente ele acontece dessa forma, né? Às vezes ele é um convite para que a pessoa vá para um outro país, a pessoa vai de forma voluntária, ela realmente quer isso. (…) Só que, quando ela chega lá, não foi dito para ela exatamente o que ela ia fazer lá ou quais eram as condições a que ela ia ser submetida”, afirma Letícia Prado, delegada da PF-AM.

‘Promessa de algum turco’

Fantástico visitou a comunidade Taracuá, onde foram registrados os primeiros casos de adolescentes que viajaram para a Turquia. Para levar ao local, é preciso viajar por 5 horas de barco pelo rio Uaupés.

Lá, uma indígena conta que um filho dela vive na Turquia há dois anos. Deixou o país quando tinha 15.

“Ele está estudando, está fazendo faculdade de, como é? Turista. E ele quer fazer outra pra… Como fala? Advogado. Meu filho. E tem hoje colombiano e africanas, outras lá. na mesma escola. Ele canta no celular para mim ver tudo, tudo ele me mostra, não tem nada que ele está me escondendo, esse meu filho”, diz a mulher.

Ela diz que o filho foi à Turquia em um grupo de cerca de 15 pessoas. E conta o que a fez dar um voto de confiança para a proposta.

“Estudo. Eu sou uma mulher pobre, eu não dou, como é? Eu não ajudo meus filhos. Quem está me ajudando? Ninguém”, afirma.

Fuga do álcool e das drogas

Outro fator que pesou para a decisão da mãe foi o problema do álcool em São Gabriel da Cachoeira. “Os colegas dele estão jogados aqui, só na bebedeira, eu não quis isto para meu filho. Não quis de jeito nenhum”, diz a indígena.

Mesmo crianças, às vezes de 12 anos, já começam a se envolver na droga, na bebida mesmo. Então ficam vulneráveis a isso, então quando chega uma promessa para um futuro melhor, eles não pensam duas vezes, né?”, afirma João Porfírio Pimenta Neto, conselheiro tutelar.

Imagens do conselho tutelar feitas para um relatório encaminhado ao conselho nacional de justiça há um ano mostram cenas de consumo descontrolado de álcool e violação dos direitos da criança e do adolescente.

Lúcia Alberta Andrade, nascida no alto Rio Negro, conhece bem a situação, que hoje acompanha como diretora de desenvolvimento sustentável da Funai, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas.

“Nós criamos em São Gabriel da Cachoeira uma rede de proteção social pra atuar justamente com esses jovens, e não só jovens e crianças, mas também com os adultos que estão em situação de vulnerabilidade”, afirma Lúcia.

Segundo ela, é importante ressaltar a Funai foi recebida após a passagem de governo em situação de “bastante vulnerabilidade”. “A nossa estrutura de servidores é muito precária. Hoje nós temos menos servidores na ativa do que servidores que estão aposentados”, diz.

Formulários idênticos

Algo que chamou a atenção da Corregedoria de Justiça foi o padrão das autorizações do cartório de São Gabriel da Cachoeira para a responsabilização pelos jovens.

“Os formulários eram idênticos. A população objeto dessa empreitada, a mesma: indígenas, menores e do sexo masculino, vulneráveis”, afirma Jomar Ricardo Saunders Fernandes, corregedor-geral de Justiça do AM.

Após o caso vir à luz, a corregedoria revogou todas as procurações e quaisquer outros documentos que outorgassem poderes a estrangeiros. ”Depois, expedimos uma orientação a todos os cartórios do estado do Amazonas, que tratam do registro civil e tabelionato, para que nestes casos tomasse a devida atenção”, completa o corregedor.

O filho de outra indígena ouvida pela reportagem, Suzana, voltou para a família em fevereiro, quando foi resgatado com outros 14 jovens da sede da Asham em Manaus, que não tinha autorização para funcionar como alojamento. Lá, fiscais também encontraram carne estragada.

“Ninguém pode desobedecer, não. Uma vez um garoto pegou sem a permissão um pão. Foi comer escondido, aí ficou sem merenda”, conta um menino que também estava no alojamento e não foi identificado pela reportagem.

”Redução da alimentação, proibição de comer, dificuldade de contato com as suas famílias, o que caracteriza, sem dúvida nenhuma, um fluxo que indica tráfico de pessoas”, diz Umberto Ramos, superintendente da PF-AM.

“Quando a gente chegou no imóvel, a gente pôde perceber assim as crianças muito, muito bem catequizadas, muito bem orientadas. Elas ficavam tipo como robozinhos, todas paradinhas, todas em posição e rapidinho, com um comando só do olhar do administrador ou do responsável”, conta Lilian Barroso, secretária de assistência social.

Fantástico tentou ir à sede da Asham em abril e também à casa da associação em São Paulo na última semana, mas a equipe não foi recebida.

Em depoimento à PF, Abdulhakim disse que não tem intenção de converter indígenas à sua religião, mas se alguém quiser aprender sobre o Islã, tem a obrigação de ensinar.

Em São Gabriel da Cachoeira, mesmo sem perspectiva de futuro, Suzana agora prefere ter os filhos a seu lado.

“Eu falei pra ele, imagina, com esses pessoal do turco você não vai mais, não. Você procura de estudar aqui, porque eu sinto muito, porque eu não sei se é verdade o que eles estão dizendo”, afirma a indígena.

Séculos de catequização

“O foco da nossa preocupação foi nesse sentido, né? De essas crianças e adolescentes estarem sendo excluídas do seu convívio familiar e comunitário, do seu espaço de convivência cultural, étnico e dentro da sua terra indígena”, diz Lúcia, diretora da Funai.

Ela lembra ainda que a catequização de indígenas por outras religiões, as cristãs, começou assim que os colonizadores chegaram e seguiu através dos séculos.

“A região do alto Rio Negro teve um processo de colonização cristã muito grande (…) que acabou influenciando e dizimando algumas línguas indígenas. As religiões, elas são também um direito do cidadão, mas as religiões não podem interferir no modo de ser, no modo de viver, na língua desses povos”, afirma Lúcia.

Edilberto, que desistiu de ir para Turquia, agora quer seu futuro aqui. “Eu não me imagino com o Abdul. Eu tenho um sonho de trabalhar na Polícia Militar ou em alguma segurança. Se não der certo muito aqui, eu posso conversar com ele se eu posso ainda voltar. Aí eu pretendia voltar, sim”, afirma o jovem.

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